Considerações sobre os martírios de Cunhaú e Uruaçú
Por: Robson Vasconcelos Carvalho¹
Um resgate histórico
Para prevenir qualquer desvirtuamento das reais intenções desta breve análise, que se propõe a fazer um modesto resgate de fatos históricos, devo deixar claro que não me oponho aos rituais de santificação internos à Igreja Católica Apostólica Romana em relação aos considerados “mártires” por esta instituição. Não me cabe aqui nenhum juízo de valor ou posicionamento, seja contrário ou favorável a respeito dos acontecimentos, nem muito menos questionar ou discutir a fé professada por esta igreja e por seus devotos, fato que originou os episódios específicos de Cunhaú e Uruaçú.
Além disso, reconheço a importância para o turismo potiguar diante do fato de a igreja católica, pela primeira vez em sua história, canonizar trinta santos de uma só vez, considerando inclusive que o Brasil possui apenas um santo.
Inspirado na leitura do livro “O povo brasileiro”, de Darcy Ribeiro, pude ter a noção clara de que centenas de milhares de índios de diversas tribos e negros africanos foram dizimados para a formação do nosso país, desde os primeiros momentos do nosso “descobrimento”.
Vários autores, intérpretes da formação e História do Brasil, inclusive, trabalham com a ideia de que o Brasil não foi “descoberto”, mas “achado”, “conquistado”, “invadido”, pois esta terra já existia há milênios, e os seus habitantes originários foram quase que completamente exterminados no processo de colonização que durou pelo menos trezentos anos.
No trabalho minucioso desenvolvido por pesquisadores, antropólogos, historiadores e sociólogos, é unanime a existência de diferentes tribos indígenas nestas terras. Muitas delas conviviam pacificamente entre si e outras eram rivais e combatiam-se a todo momento, em busca de expansão territorial.
Neste período, o que hoje chamamos de Brasil era alvo de tentativas de colonização por parte de diversas nações europeias (dentre elas a principal, Portugal) e ainda Espanha, Holanda, dentre outros e cada nação, também visando sua expansão territorial e econômica, “casava-se” com uma igreja, que desejava igualmente expandir-se no território das almas, por meio do aumento do seu número de fiéis.
No Brasil, cada uma delas (aliada a uma nação que professasse a sua religião), conseguia amansar e conviver com diferentes tribos indígenas, às quais lhes impunham suas religiões, além de escravizá-las. Além disso, eram usadas pelos próprios colonizadores para defender seus interesses por meio da briga entre si. Ou seja, nações rivais usavam tribos indígenas rivais para ampliar seu espaço político, comercial, religioso e econômico no Novo Mundo.
A “selvagem” cultura indígena da antropofagia
Os massacres em questão, ocorreram também dentro do contexto da Guerra dos 30 anos, que se deu entre 1618 e 1648, caracterizada pelo conflito religioso internacional entre católicos e reformistas. O período também marcou a transição do feudalismo para idade moderna.
Em meio à essas disputas, os massacres violentos eram incentivados e praticados por absolutamente todas as partes. Os morticínios e martírios se davam de todos os lados, sem exceção.
Neste contexto, arrancar o coração do guerreiro da tribo rival e comê-lo posteriormente, tratava-se de um costumeiro e natural ritual indígena. Quando uma tribo vencia a outra, o guerreiro vencedor comia os guerreiros derrotados. Algumas comiam especificamente o coração dos que não se entregavam, que eram os guerreiros mais valentes.
Se o guerreiro ou povo da tribo rival perdedora expressasse medo, pavor ou covardia, os guerreiros da tribo vencedora recusavam-se a comê-los. O ritual de antropofagia acontecia na intenção de uma tribo ou guerreiro incorporar simbolicamente o seu poder e as suas qualidades: o poder do guerreiro ou povo valente, mas que fora derrotado. Com isso, sentiam-se mais fortes. Tal episódio cabe no contexto dos massacres de Cunhaú e Uruaçú.
A desastrosa presença dos Jesuítas no Brasil e no solo potiguar
Desde o início da colonização do Brasil, conforme narrativas dos padres José de Anchieta (1560), Padre Nóbrega (1558), a Igreja católica desenvolvia um ambicioso plano Jesuítico que favorecia a colonização lusitana, por meio da violência mortal, intolerância e ganância.
Padre Anchieta chegou a louvar, em mais de 2.000 versos, como o reproduzido abaixo, o morticínio promovido pelo colonizador Mem de Sá, que dizimava aldeias indígenas para colonização e encaminhava os sobreviventes à catequese e escravidão patrocinada pelos jesuítas: “…quem poderá contar os gestos heróicos do Chefe à frente dos soldados, na imensa mata: cento e setenta as aldeias incendiadas, mil casas dizimadas pela chama devoradora, assolados os campos com suas riquezas, passado tudo ao fio da espada”. (RIBEIRO, 1997, p. 39)
No nosso caso, foram encontrados relatos de diversas campanhas de extermínio dos índios Potiguaras até aproximadamente em 1599. A Coroa Portuguesa respaldava legalmente a escravidão do índio pela igreja e a sua utilização em “guerras-justas”. Estava autorizada até mesmo a compra de crianças indígenas.
A Companhia de Jesus chegou a ser a maior proprietária de terras urbanas e de escravos no Brasil e de acordo com a pesquisa de Darcy Ribeiro, teriam sido moídos cerca de 6 milhões de índios durante todo o período de formação do Brasil. Índios de todas as tribos foram exterminados em massa e de maneira cruel, pelo “trabalho escravo, por doenças dos europeus em geral e nas guerras, onde eram usados para combater (com arco e flecha e tacapes nas mãos) contra canhões e arcabuzes” (RIBEIRO, 1997, p. 39)
Na visão de alguns jesuítas, os índios nem mesmo possuiriam alma. Já outros enxergavam os índios como proprietários de almas racionais, mas transviadas e por isso deveriam ser catequisados: era um gigantesco mercado de almas a ser conquistado. Porém, segundo Darcy Ribeiro, o resultado foi desastroso, pois: “… mais tarde, os Jesuítas se arrependeram por perceber que além de não salvarem as almas dos índios, não salvaram as suas vidas (…) Os jesuítas foram um dos principais fatores de extermínio”. (RIBEIRO, 1997, p. 43)
Os Holandeses no Rio Grande do Norte
Sobre a presença holandesa no território que hoje temos por Rio Grande do Norte, estes, reformistas e de religião Calvinista, chegaram a assumir o controle do Forte dos Reis Magos. Além disso, do mesmo modo que os portugueses dominaram outras tribos indígenas na região, os holandeses, sob o comando de Jacob Rabbi, amansaram, subjugaram e usaram a seu serviço as tribos dos índios Tapúias, Potiguares e Janduís.
Jacob Rabbi era alemão, natural do condado de Waldeck e emigrou para a Holanda onde foi contratado pela Companhia das Índias Ocidentais Holandesas. Quando veio para o Brasil, permaneceu durante quatro anos vivendo entre estas tribos indígenas e assimilou os costumes nativos, num verdadeiro processo “indianização”.
Jacob Rabbi foi o responsável por vários saques e chacinas em engenhos nas capitanias do Rio Grande, Paraíba e Pernambuco. Os assaltos, saques e morticínio promovidos pelos índios Janduís, por exemplo, rendiam gado, roupa e joias ao seu comandante, que conseguiu acumular uma pequena fortuna.
Os massacres de Cunhaú e Uruaçú
Segundo relatos históricos, aconteceram pelo menos cinco massacres deste tipo no Rio Grande do Norte, sob o comando de Jacob Rabbi, impostos pelos conflitos da colonização: no contexto de crise no mercado internacional do açúcar, os holandeses invadiram o nordeste brasileiro para cobrar as dívidas dos portugueses que haviam construído engenhos com dinheiro emprestado pela Holanda; posteriormente, ocorreram levantes de colonos portugueses e brasileiros contra o domínio holandês.
Dois destes massacres ocorreram em 1645 e se destacam dos demais por ter havido testemunho de resistência e fé católica: Cunhaú em 16 de julho e Uruaçu em 03 de outubro. Os que resistiram, foram mortos por holandeses e “soldados” indígenas, por não aceitarem a imposição militar, cultural e da religião protestante calvinista.
Em Cunhaú, município de Canguaretama/RN, o fato se deu na capela de Nossa Senhora das Candeias, localizada no primeiro engenho construído em território potiguar. Durante a celebração, após a elevação da hóstia, os soldados holandeses trancaram todas as portas da igreja. A um sinal de Rabbi, os índios invadiram o local e chacinaram os que permaneceram em oração, atendendo ao pedido do padre André de Soveral, celebrante da missa e que foi morto a punhaladas.
Em Uruaçu, os presentes tiveram as línguas arrancadas para que não pudessem proferir orações católicas; tiveram braços e pernas decepados e crianças foram partidas ao meio e degoladas. O celebrante, padre Ambrósio Francisco Ferro, foi torturado e o camponês Mateus Moreira, que teve o coração arrancado, ainda vivo exclamou: "Louvado seja o Santíssimo Sacramento".
Quem são os verdadeiros mártires do Brasil?
Para tentar concluir, reflitamos sobre guerras e disputas sanguinárias entre nações e povos diversos ou entre devotos de religiões distintas, mesmo sob o pretexto das guerras santas: é possível afirmar que alguém está com a razão? Entre vencedores e vencidos é possível apontar quem é herói, vilão, mártir ou algoz?
É válido ressaltar que os massacrados de então já haviam massacrado ou patrocinado massacres por meio de suas agremiações tribais ou religiosas. Para os católicos, o grande inimigo da época era a reforma calvinista contra quem lutavam e tentavam resistir.
Se os mortos de Cunhaú e Uruaçú são tidos como mártires (agora considerados santos), é importante frisar que estes os são, sim. Porém, circunscritos à esfera religiosa da Igreja Católica, pelo testemunho incomum de fé, do mesmo modo como outros podem ser considerados mártires, delimitados à esfera da Igreja Protestante, Reformista, Calvinista.
E quanto aos índios “cruéis e selvagens”? Ao longo de séculos de colonização, foram dizimados mais de seis milhões deles – não sobrou quase nada – mortos em guerras, usados como bucha de canhão e pelas doenças do homem branco e “civilizado”. Habitavam originariamente esta terra quando ainda nem se imaginava que aqui seria formada uma pátria ou que seria introduzido qualquer tipo de religião, tendo eles os seus próprios rituais. Mesmo assim, tiveram suas terras invadidas e delas foram arrancados cruelmente para servirem de escravos em nome da fé que os amansava e ainda eram tidos como preguiçosos. Suas crianças lhes foram arrancadas, suas mulheres abusadas, suas aldeias queimadas e até do que restou de sua cultura nos apropriamos para a formação de uma nação, que hoje os renega ao esquecimento.
Diante de todas essas considerações, baseadas em fatos históricos e sociológicos, não nos parece que seriam os índios os verdadeiros Mártires do Brasil?
¹Robson Vasconcelos Carvalho, bacharel em ciência política, licenciado em sociologia, especialista em gestão pública, mestrando em Ciência Política pela UFRN. Autor do livro Manual do Cidadão, pela EDUFRN, apresentador de programas de tvs e radio no RN.
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